E se fosse com você?

Em menos de um mês, três funcionárias do Aterro Sanitário foram picadas por seringas descartadas de forma incorreta junto ao material reciclado. Todas passam por acompanhamento médico.

Por Aline Christina Brehmer 09/04/2019 - 09:20 hs
Foto: Rafael David/Jornal Café Impresso

Começou o primeiro turno de Janaína. Ela trabalha na triagem do lixo reciclável no Aterro Sanitário de Timbó e estava há quatro meses afastada devido à licença-maternidade. Em casa, tem um bebê com apenas cinco meses (ela retornou ao trabalho antes por ter entrado de licença aos sete meses de gestação).

Em seu primeiro dia de volta à rotina, o pior aconteceu: Janaína acaba de espetar seu dedo em uma agulha que foi despejada junto aos materiais recicláveis. De imediato ela conversa com o Anderson Sperber, o coordenador do setor de resíduos sólidos do Aterro.

Para ele, infelizmente essa não é uma situação incomum. Somente nos últimos 30 dias foram três funcionárias que pediram ajuda devido à mesma situação Janaína é imediatamente encaminhada para a Unidade de Saúde mais próxima, onde vai fazer os testes rápidos para HIV e as hepatites B e C.

“No primeiro exame não apontou nada. O resultado fica pronto em 20 minutos e preciso fazer outros ainda”, conta. Mas no caso dela há um agravante: o bebê que ainda é amamentado.

A difícil decisão de uma mãe

Como mãe, ela se viu em uma encruzilhada: poderia tomar os Antiretrovirais (conhecido como “coquetel”) evitando assim a infecção pelo HIV e, por consequência, interrompendo a amamentação para não transmitir o vírus para a criança. A outra alternativa era continuar a amamentar o filho mesmo ciente dos riscos de transmitir o HIV para ele. Janaína escolheu não tomar os remédios e assumir os riscos para ela e a criança.

“Meu filho não aceita se alimentar pela pule e não iria deixar de amamenta-lo. No começo muita coisa passou pela minha cabeça, mas agora estou mais calma. Minha decisão foi como mãe, pensando no melhor para meu bebê. Espero que os próximos testes continuem confirmando que não contraí nenhuma doença, já que é a saúde de duas pessoas que está em risco”, desabafa Janaína Camargo, que tem 23 anos.

Atenção redobrada

Janaína conta que durante o um ano e meio que trabalha no setor de triagem do Aterro nunca foi incomum se deparar com seringas descartadas de forma incorreta, entretanto, até duas semanas atrás nunca tinha sido uma vítima desse erro.

“Agora é atenção redobrada e receio também. É difícil não ver as agulhas, já que vêm tantas, mas naquele dia acabei me espetando. Pior ainda é para o pessoal da coleta que rasga os sacos de lixo para nos encaminhar os materiais aqui na esteira”, comenta.

O marido dela, inclusive, é uma das pessoas que trabalha no setor de coleta e também já acabou sendo “picado” por uma agulha descartada incorretamente.

Amiga e vítima

Do lado de Jana está Jane Sales Cavalcante, que tem 30 anos e trabalha ali há seis meses. No dia 1º de março, quando abriu uma das sacolas que vinha na esteira, também sentiu que sua mão tinha sido espetada por alguma coisa.

“Eu empurrei a sacola e a agulha me perfurou duas vezes no mesmo lugar, mas não falei nada para ninguém. Na hora do intervalo aquela parte que tinha sido espetada começou a doer e ali que pensei em como o que aconteceu foi grave. Falei com o Anderson e fui levada para a Unidade de Saúde”, relembra.

Na primeira vez em que fez os exames não houve nenhum resultado positivo para os vírus. No dia 1º desse mês Jane repetiu os testes, que novamente deram negativo. Ela optou por tomar o coquetel de remédios, iniciando o tratamento logo no mesmo dia.

“Tem muitos efeitos colaterais como enxaqueca, enjoo, tontura, pesadelos. Foram dias bem complicados, mas agora passou e, pelo menos, sei que os riscos de contrair algum vírus são bem menores”, analisa.

Então, como descartar as agulhas?

Mas afinal, qual é a forma adequada do descarte dessas agulhas? A coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Timbó, Grasiele Campregher, esclarece essa dúvida.

Ela diz que existe uma caixa chamada “Descarpack”, feita especialmente para esse fim. “Ela tem duas camadas de papelão e é algo que todos os hospitais e postos de saúde têm justamente para colocar esse material perfurocortante que, em seguida, é encaminhado à Getal, uma empresa de Blumenau que é responsável por dar um destino correto a esses materiais”, esclarece.

Grasiele diz que a empresa passa nos hospitais, unidades de saúde e policlínica para recolher essas caixas com as agulhas, fazer a pesagem e, em seguida, levar até a empresa. “É um serviço bem caro, porém, é obrigatório também que no âmbito particular de atendimento, seja em consultórios odontológicos ou até mesmo clínicas veterinárias, seja feita a destinação correta dessas seringas”, destaca.

Incidentes são comuns

Grasiele comenta que os acidentes envolvendo picadas de agulhas são recorrentes, inclusive envolvendo profissionais da área de saúde. “As pessoas têm medo de falar quando acontece, mas não devem. É preciso tomar medidas urgentes em casos assim”, alerta.

Hoje há muitos pacientes diabéticos que fazem uso da insulina de forma injetável. Sendo assim, eles recebem as agulhas e as levam para casa, aplicando a dosagem sozinhos.

Para evitar acidentes, a Policlínica fornece juntamente com a medicação a caixa “descarpack” para o descarte correto, sendo que a mesma é devolvida nas Unidades de Saúde da Família (USF) para o recolhimento da Getal. Porém, é justamente na hora de muitas pessoas se desfazerem das agulhas que os problemas acontecem.

“Nós sempre frisamos para todos que recebem as agulhas, tanto da Policlínica quanto nas USF, que tragam as seringas de volta para o lugar de onde receberam. Assim, garantimos que pelo menos essas agulhas vão ser descartadas corretamente. Infelizmente, o serviço de saúde não consegue recolher tudo o que o município despreza de agulhas, mas o que é fornecido pelo SUS pode ser devolvido ao SUS. O ideal seria que quem fornece esse material (farmácias ou clínicas particulares) realizasse também o recolhimento dele, como é feito com as pilhas e com lâmpadas”, sugere.

Testes rápidos

No que diz respeito aos três testes realizados nas pessoas que foram vítimas desses acidentes, Grasiele esclarece que se algum deles der positivo já na hora em que é feito significa a pessoa não contraiu o vírus devido à picada da agulha, por exemplo – ela já tem a doença há mais tempo.

“Tanto o HIV quanto as hepatites demoram a se manifestar no organismo das pessoas. O vírus do HIV no ambiente morre após algumas horas, já das hepatites pode permanecer por até 20 dias na agulha. É preciso repetir os exames após 30, 90 e 180 dias, pois a hepatite B pode demorar até seis meses para se manifestar”, detalha.

No caso do HIV há uma medicação chamada PEP (Profilaxia Pós-Exposição) que deve ser tomada durante 28 dias e é ofertada pelo sistema de saúde do município. O tratamento pode ser iniciado até 72 horas após o incidente. O HIV é uma doença que não tem cura, mas a pessoa pode ter uma vida normal se medicando corretamente.

A Hepatite C também tem tratamento pelo SUS, que dura três meses. É uma doença que pode ser curada em 95% dos casos, já no caso da Hepatite B, que também tem tratamento pelo SUS, não há como garantir que a pessoa irá se curar.

“É a única das hepatites que conseguimos prevenir com vacina, a qual é disponibilizada nas USF. Todos devem tomar ela, principalmente quem trabalha em ambientes de risco. A vacina tem atestada uma eficácia que chega a 90%, desde que tomadas as três doses”, complementa.

Atenção na hora de descartar

Se por um lado as pessoas que recebem seringas nas USF Timbó são instruídas e devolvê-las ali com a caixa específica para o descarte, há quem receba agulhas em outros lugares e não faça a mínima ideia de onde elas devem ser despejadas.

Grasiele diz que, em muitos casos, pessoas chegam até justificando que, como a seringa é de plástico, pensaram que o correto seria jogá-la fora junto com o material reciclado.

Sperber, que trabalha no Aterro, revela que todos os dias agulhas são encontradas entre os materiais recicláveis – além de cacos de vidro sem qualquer tipo de proteção, que também acabam ocasionando acidentes de trabalho.

No dia da entrevista ele nos mostra uma caixa que foi encontrada na hora da triagem com, pelo menos, 15 agulhas – uma delas até tem vestígios de sangue – junto a algodões e algumas embalagens de remédio. Provavelmente se tratam de seringas que eram utilizadas por uma pessoa diabética para injetar insulina, mas não tem como ter certeza disso.

“As duas situações nos preocupam, mas a das agulhas em maior escala, até porque parece que esses “acidentes” têm se tornado ainda mais frequentes aqui. Quando aconteceu o caso com a Janaína decidimos tomar uma medida mais eficiente e trocas as luvas dos funcionários. Antes elas eram de tecido, agora são emborrachas e mais grossas. Não garantem que esses problemas deixem de acontecer, mas sem dúvida diminuem os riscos”, explica.

Instrução e auxílio

Sperber garante que todos os 34 funcionários são instruídos a, em qualquer situação de risco, comunicarem imediatamente o setor administrativo do Aterro para que as medidas sejam tomadas.

“Há pessoas que já se picaram com agulhas na triagem e nem sequer nos falaram. É preciso reforçar o alto nível de risco que situações assim desencadeiam, porque nem todos têm noção disso”, diz.

Como exemplo ele retoma o caso de Janaína, uma situação que o deixou comovido. “É o lado humano. Você não tem como obrigar ninguém a tomar o coquetel, obviamente. Mas a situação dela foi realmente difícil, algo que só aconteceu pelo desconhecimento, ou ainda, desleixo de outras pessoas”, desabafa.

Sperber ainda denuncia que há diversas caixas de remédios, ainda fechadas e dentro do prazo de validade, que foram fornecidas pelo poder público e encontradas no lixo pelo pessoal que faz a triagem.

“Há outras pessoas que precisam desses remédios. São medicamentos caros, que muitos não têm condições de comprar e estão ali, no lixo. Não adianta as pessoas reclamarem que a saúde não funciona e ter esses tipos de atitude, afinal, o exemplo começa pela gente mesmo”, pontua.

Os riscos

·         O risco de infecção por HIV pós-exposição ocupacional percutânea com sangue contaminado é de aproximadamente 0,3% e, após exposição de mucosa, aproximadamente 0,09%;

·         No caso de exposição ocupacional ao vírus da hepatite B (HBV), o risco de infecção varia de seis a 30%, podendo chegar até a 60%, dependendo do estado do paciente-fonte, entre outros fatores;

·         Quanto ao vírus da hepatite C (HCV), o risco de transmissão ocupacional após um acidente percutâneo com paciente-fonte HCV positivo é de aproximadamente 1,8%.

Fonte: Ministério da Saúde – Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_expos_mat_biologicos.pdf)