Todos os dias o ar me falta pela manhã. Sinto vontade de
chorar e uma dor enorme de saudade no peito. Sinto muita, muita saudade do
mundo que conhecia. Depois respiro fundo e lembro da sorte de estar viva. E do
privilégio maior ainda de estar saudável e com as pessoas que eu amo saudáveis
perto de mim. Sobra um breve alivio, uma certa culpa pelo privilégio, um sopro
de resiliência e muito, muito medo. Sofro, como 70% dos entrevistados de um
estudo recente realizado na Irlanda, de um transtorno mental nomeado pela
Organização Mundial da Saúde como Fadiga Pandêmica.
É uma das conseqüências perversas do nosso estado de luto
coletivo. Vivemos, depois de um ano de pandemia, um luto diferente do luto por
uma perda pessoal, mas semelhante em muitos aspectos, a começar por sintomas
muito familiares a enlutados: angústia, ansiedade, medo, pânico,
desesperança.
Estamos de luto pelos mortos que não paramos de contar no
Brasil (e no mundo) e também pela perda da nossa referência da vida como ela
era. Para tentar entender melhor esse transtorno e como mitigar seus efeitos
sombrios fui conversar com a professora Gabriela Casellato, mestre e
doutora em psicologia, especialista em luto e uma das fundadoras do 4Estações
Instituto de Psicologia.
“O luto pessoal é nossa reação diante de uma ruptura” diz a
psicóloga. “Se perdemos alguém querido, o mundo tal o conhecíamos, se vai com
ele”. O processamento do luto é, portanto, a criação de uma nova rotina e nossa
estruturação para viver nela. No luto individual, lidamos com nossa tristeza e
atravessamos as fases que dela decorrem. No coletivo, temos que lidar com a
tristeza, mas também com o horror, a desesperança e o medo, dentro de um
cérebro já fatigado, que não nos oferece capacidade de reação.
“A ruptura pela pandemia”, explica Gabriela Casellato, “primeiro
nos levou esse mundo familiar. Mas seu prolongamento nos tirou a perspectiva de
outro mundo qualquer. Já não falamos em “novo normal”. Hoje, mais do que nos
colocarmos diante da perda, temos que lidar com a indefinição provocada por
perdas permanentes e incessantes.” E pelo medo, que, depois de um ano de
pandemia, é muito maior do que no seu início.” A psicóloga nos explica que o
medo é um importante mecanismo de defesa para o cérebro. O medo prolongado e
permanente, entretanto, nos consome pelo stress ao invés de ajudar a nossa
sobrevivência. “É como um soldado na guerra”, diz. “O cérebro não desliga e nós
precisamos que ele desligue para acessar nossas ferramentas de
sobrevivência: a resiliência, a força, a criatividade, a fé.“
Como o luto pessoal, que nos ensina ao nos colocar diante da
impermanência, o luto coletivo também nos leva à necessidade de
resignificar a vida. “O que nos cabe agora”diz a especialista, “é
fortalecer nossos recursos internos. Contar com as pessoas, alimentar, mesmo à
distância, nossa rede de afetos que são fonte de energia. Buscar, se possível,
ajuda de profissionais. Temos também que proporcionar alívio para o
cérebro, desligar, mesmo temporariamente, o nosso sistema de alerta. Somos
dotados de um mecanismo cerebral que nos prepara para o enfrentamento, mas
também para a fuga. Precisamos hoje aprender a fugir do alerta permanente, a
nos proporcionar horas de alegria, momentos de bem estar. Precisamos dar um
descanso para nossa mente e nos obrigar a desviar o olhar do perigo. Precisamos
de apaziguamento provisório”.
Essa fuga não significa alienação ou banalização da morte e
do sofrimento alheio. Mas não precisamos assistir todo o tempo a todos os
noticiários. Não precisamos ser reféns das más notícias e da sensação de
abandono pela falta de um governo que nos guie neste momento tão grave. Precisamos
conhecer e respeitar a tristeza do outro mas também garantir nossa saúde mental
até para protegermos e fortalecermos nossa própria imunidade, de que tanto
necessitamos hoje.
A luz no fim do túnel ainda não é visível aqui no Brasil,
pela demora das vacinas. Mas a esperança reside na enorme capacidade
adaptativa do ser humano. “Somos capazes de nos reinventarmos constantemente,
permanentemente” afirma Gabriela Casellato. “Eu por exemplo”conta “comecei a
bordar. Não sabia, fui aprender e passo momentos de relaxamento nos bordados. A
gente consegue criar uma nova habilidade. Criar uma atividade prazerosa pode
estar em um trabalho manual, mas também na espiritualidade, na meditação, no
desenvolvimento de alguma fonte de alívio para o corpo e para a alma.”
Por: Cynthia de Almeida (Vamos falar sobre o luto?)
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